1. INTRODUÇÃO
Nós não sabemos como era Jesus, o filho de um obscuro
carpinteiro e de uma modesta dona-de-casa da Palestina do século primeiro de
nossa era. Nenhum contemporâneo dele o representou, porque este tipo de arte
não existia no conceito hebraico. Só mais tarde, na já Idade Média, os pintores
começaram a pintar o seu rosto a partir de uma idealização.
Nela ficava clara a dificuldade de os seres humanos verem
Jesus como um homem. Por isto, boa parte dos quadros traz uma auréola sobre a
sua cabeça, como a dizer, a indicar a sua diferença dos homens.
Este procedimento tem acompanhado as artes cristãs. No
teatro, o mais comum era Jesus aparecer de costas, nunca de frente. Foi o
cinema praticamente o primeiro a dar uma dimensão humana a Jesus, com destaque
para Pier Paolo Pasolini, que o retratou com um italiano qualquer. Nós nos
acostumamos com a imagem de um Jesus europeizado, de pele clara, rosto macio,
olhar vago, cabelos lisos e longos e barbas também amplas. Tanto nos
acostumamos que achamos bravo demais o rosto que alguns cientistas ingleses
apresentaram como sendo o mais provável para o filho de Maria e José. No fundo,
nossa imaginação se conforta com a ideia de um Jesus mais divino do que humano.
Como era mesmo o corpo de Jesus, não o sabemos. Nós temos
que ficar com a imaginação. Nós que temos que nos conformar com o mistério.
Os contemporâneos de Jesus não tiveram esta dificuldade, mas
tiveram outra: a de entender como Deus aquele ser que eles viam como
completamente humano, que teve que estudar como todo menino (Lucas 2.52); que,
quando adulto, tinha sede (João 19.28) e fome (Mateus 4.2; Mateus 21.18), e que
sentia cansaço (João 4.6) e angústia (João 12.27, 13.21) como todo ser humano.
Como acontece a qualquer um de nós, quando o fim de sua vida se aproximava, ele
admitiu que estava transtornado (João 12.27). Como ver nEle o Emanuel (o
próprio Deus conosco), se chorou porque um amigo morreu (João 11.35) ou porque
a sua cidade o recusava (Lucas 19.41)? Eles não o receberam como Deus, mas
apenas como uma pessoa qualquer (verso 11). Seus irmãos de sangue não viram
nada de especial nele. Nem sequer perceberam que o seu irmão mais velho nunca
pecou (2Coríntios 5.21). Sim, embora tenha passado por todo tipo de tentação,
Jesus não pecou (Hebreus 4.15).
Ninguém explicou melhor este mistério do que os autores do
Evangelho de João e da Carta aos Filipenses, que escreveram magistralmente:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas
por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava
nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas
não prevaleceram contra ela.
O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio
dele, mas o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o
receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos
filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome; os quais não nasceram do
sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e
de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigénito do Pai.
(João 1.1-5, 10-14)
Cristo Jesus (...), subsistindo em forma de Deus, não julgou
como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a
forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura
humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de
cruz.
(Filipenses 2.5-8)
2. PARA ENTENDER A ENCARNAÇÃO
Encarnação é a palavra que a teologia criou para expressar o
itinerário de um Deus Absoluto que se torna homem, com todas as suas
limitações, mas sem deixar de ser Deus, com toda a sua perfeição.
A encarnação de Deus é um mistério e um paradoxo. A
encarnação é um desafio à razão que nos convida à fé e um desafio à fé que nos
convida a pôr em cena toda a nossa capacidade de imaginar e pensar. A fé nos
abre a porta do mistério. A razão nos põe na antessala do paradoxo. Para
aceitá-la, precisamos crer no incrível amor de Deus e aceitar o Novo Testamento
como a fonte de nossa reflexão sobre a ação de Deus na história. Só por amor a
nós Jesus Cristo abriu mão de sua divindade para experimentar a nossa
humanidade. (Sim, Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito,
para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. -- João
3.16). Só o Novo Testamento nos abre as páginas para entender a grandeza deste
gesto, que extrapola os limites da mente humana, ao narrar a experiência da
união da plena divindade e da plena humanidade, possibilitada pelo nascimento
virginal de Jesus e que possibilita a nossa readmissão à condição de filhos de
Deus (Vindo a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher,
nascido sob a lei, para resgatar os que
estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. Então, porque
somos filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama:
"Aba!" (Pai!] De sorte que já não és escravo, porém filho; e, sendo filho,
também herdeiro por Deus. (Gálatas 4.4-7)
Como, entender, a encarnação, à luz da fé e do Novo
Testamento?
Nossa primeira dificuldade é
entender como o Espírito se torna carne. A razão não consegue
explicar o processo ao qual poderíamos
chamar de inseminação espiritual e pelo qual Maria foi fecundada. Ao longo da
história do Cristianismo, várias respostas equivocadas vêm sendo dadas. Como
ainda são repetidas, precisamos corrigi-las. Por isso, precisamos afirmar que:
1. Jesus não foi um ser resultante da reencarnação de um
profeta do passado. Diferentemente do que ensinam todos os espiritismos, do
hinduísta ao kardecista, Jesus não foi uma reencarnação de Elias ou de algum
outro profeta. Os espiritismos ensinam que o processe da reencarnação termina quando
a alma alcança o estado da perfeição e mergulha de novo na alma universal.
Jesus desmente a reencarnação: Ele não evoluiu aqui na terra, porque já nasceu
perfeito. Segundo o Novo Testamento, Ele não foi gerado por alguma alma
transmigrada, mas diretamente pelo Espírito Santo.
2. Jesus não foi um ser resultante de um processo evolutivo
e ao final do qual alcançou o "estatuto" de Deus. Para os adocianistas,
Jesus foi adotado pelo Pai e se tornou Deus, embora não o fosse em sua origem.
Neste sentido, como criam os imperadores romanos a respeito de si mesmos, todos
os seres humanos podem alcançar a divindade. Esta "fantasia" está em
contradição com o que ensina o apóstolo Paulo, especialmente em Filipenses
2.5-11. Ele era Deus a eternidade e continua Deus.
3. Jesus não foi um ser humano com a aparência de Deus.
Diferentemente do que prega o docetismo, Jesus não apenas parecia homem; Ele o
era. Como insiste o autor de 1João 4.2-3, precisamos crer que Jesus veio em
carne ao mundo, embora muitos se recusem a aceitar esta evidência (2João 7). Os
evangelhos falam mais da humanidade do que da divindade de Jesus. A fórmula
paulina é perfeita: nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade.
(Colossenses 2.9)
4. Jesus não tinha uma dupla personalidade, a divina e a humanas
distintas. Diferentemente do que propuseram alguns pensadores antigos, Jesus
não era um Deus habitando um corpo humano (apolinarismo), nem que em Jesus
participavam duas pessoas: uma humana e outra divina. Antes, Ele era uma só
pessoa, referindo-se a si mesmo sempre como "eu", jamais como
"nós".
5. Jesus não era um ser híbrido, formado de uma fusão entre
suas duas naturezas como acontecem com os ingredientes de um bolo.
Diferentemente do que pregavam os monofisistas (ou eutiquianos), Jesus era
totalmente Deus e totalmente homem. A divindade de Jesus e a humanidade de
Jesus permaneceram intactas (preservadas). O que ocorreu é que Ele abriu mão
voluntariamente do uso independente dos seus atributos divinos; só os usava em
dependência com o Pai.
6. Jesus não foi um ser criado por Deus. Diferentemente do
que ensinaram os arianos no passado e erram seus herdeiros no presente como os
Mórmons (para quem Jesus não é um membro da Trindade, mas antes a primeira das
criações do Pai) e as Testemunhas de Jeová (que ensinam que Jesus foi a mais
elevada e a primeira de todas as criações do Pai e como tal criou todas as
demais criaturas; como escreveu Charles Russell, "Jesus, pelo poder de
Jeová e em seu nome, criou todas as coisas -- anjos, principados e poderes --
bem como toda a criação terrena".), Jesus mesmo afirmou a sua eternidade,
ao dizer: Em verdade, em verdade eu vos digo: antes que Abraão existisse, EU
SOU. (João 8.58) No Apocalipse, Ele se declara o Alfa e o Ómega (Apocalipse
22.13), isto é, o Princípio e o Fim. Sim, no princípio era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. (João
1.1-2)
3. PARA VIVER A ENCARNAÇÃO
A afirmação de fé em Jesus Cristo como completamente Deus e
completamente homem, pode ser expressa da seguinte forma:
ENCARNAÇÃO
(João 1.1-14; Filipenses 2.5-8)
Esta crença é, ao mesmo tempo, convite e certeza, confiança
e esperança.
1. A primeira atitude daquele que recebe a notícia que Ele
veio em direção ao ser humano para torná-lo filho de Deus é aceitar este
esforço. A encarnação de Deus em Jesus Cristo possibilitou que Ele morresse no
lugar do homem, que pode receber sentido para sua vida, em termos de paz,
liberdade e alegria, sem ter que morrer para isto.
Ainda hoje há infelizmente pessoas que tornam atual a
informação de João. Jesus veio para o que era seu, e os seus não o receberam
(verso 11). Elas não querem ser filhos de Deus, ao não receber a Jesus como seu
Salvador e Senhor. Felizmente, há os que O recebem. A estes, Ele torna
prazerosamente filhos de Deus (verso 12). Estes são aqueles que nascem não do
sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus (verso
13). Deus lhes dá uma nova natureza, a natureza de filhos de Deus. Jesus Cristo
nasceu e morreu para tornar possível este convite, sempre renovado na Bíblia e
na proclamação. Filho de Deus é aquele que tem certeza de sua redenção.
2. A segunda atitude, consequente à primeira, é agradecer a
Jesus Cristo por sua decisão. Sua encarnação, desde que aceita por nós, nos dá vida e luz. Afinal, a vida estava nele
e a vida era a luz dos homens (verso 4).
Por causa da encarnação, a vida que estava nEle está também
em nós, a luz que Ele era também ilumina os nossos caminhos. Sem Ele, não
teríamos vida. Sem Ele, não saberíamos onde e por onde caminhar.
3. A terceira atitude é viver de um modo coerente com esta
decisão de Jesus. Ele assumiu sua humanidade e não fugiu da história. Jesus
Cristo é o mais completo exemplo da encarnação, no sentido de se comprometer
com o mundo em que viveu, não para ser moldado por ele, mas para mudá-lo. Um
cristianismo que foge do mundo é absolutamente desobediente ao modelo de Cristo
e completamente inútil, servindo apenas para ser pisado e jogado no lixo.
Se nós estamos nEle, devemos andar como Ele andou, ensina-se
1João 2.6. E o que aprendemos com Ele? Que Ele abriu de sua exclusividade
divina para ser humano. Por que, então, somos são orgulhosos de nossa salvação
e de nossa santidade? Por que, então, em lugar de ir ao mundo, como Ele fez,
queremos que o mundo venha a nós?
A encarnação, portanto, nos adverte que ser cristão é viver
assumidamente na história como uma exigência da fé e não tentar fugir dela.
Deus está no mundo.
4. A terceira atitude é manter (e viver por ela) a certeza
de sua presença conosco, agora por meio do Seu Espírito. Porque o Verbo se fez
carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade e porque, como ensina a
Bíblia, vimos a sua glória, glória como do unigénito do Pai, podemos confiar
que Ele está conosco, porque sua glória não se dissipa como a neblina, antes se
adensa por Seu poder e graça.
4. CONCLUSÃO
Somos convidados a aceitar a Encarnação para nós. Somos
convidados a afirmar a divindade e a humanidade de Jesus, segundo o ensino do
Novo Testamento.
Somos convidados a viver a Encarnação, seguindo o modelo de
Jesus Cristo.
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